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Empresas não autorizaram a publicação dos resultados individuais na ferramenta Radar Verde, que insere fornecedores indiretos na equação. Setor alega discordância na metodologia
Gigantes da indústria da carne assumiram há alguns anos o compromisso de rastrear 100% de sua cadeia de suprimentos, de forma a garantir que estão livres de desmatamento ilegal. Quando convidadas a expor os resultados alcançados, no entanto, elas ainda não se mostram dispostas a dar transparência a esse processo. Levantamento realizado por ((o))eco junto às empresas que concordaram em participar do Radar Verde – nova ferramenta que reúne dados de transparência e controle da cadeia de produção – revela que participantes ainda receiam que, com a inserção dos fornecedores indiretos na análise, os resultados alcançados por elas sejam negativos. Para o setor, a metodologia ainda precisa de “ajustes” e os resultados potencialmente diferentes podem “confundir” o consumidor e demais interessados.
O Radar Verde é uma ferramenta que, em essência, busca mostrar se as políticas adotadas por frigoríficos instalados na Amazônia e grandes redes varejistas que comercializam a carne produzida na floresta tropical garantem que seus produtos não estejam ligados ao desmatamento. A ferramenta foi desenvolvida pelo Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) e sua aplicação contou com a parceria do Instituto O Mundo Que Queremos (OMQQ).
Segundo Ritaumaria Pereira, diretora-executiva do Imazon, diferente das ferramentas de rastreabilidade hoje utilizadas pela cadeia da carne, o Radar Verde coloca sob os holofotes os fornecedores indiretos, que ainda são o calcanhar de aquiles do setor.
“O Radar Verde tenta alcançar toda a cadeia. Nos questionários, perguntamos sobre as políticas e sobre as suas práticas, seu desempenho, tanto para fornecedores diretos quanto indiretos. Isso já dá um diferencial porque estamos incluindo os indiretos no resultado final. Demos um peso igual para eles”, explicou.
O Brasil é o segundo maior produtor e o maior exportador de carne bovina do mundo. O país produz cerca de 15% de toda a carne bovina consumida globalmente. No entanto, pela maneira como a cadeia de produção de carne está estruturada, faltam informações públicas para garantir que o bife consumido internamente e também exportado não esteja associado a desmatamento durante sua produção.
Os animais podem passar por diversas fazendas ao longo de sua criação, desde o nascimento até o período de abate. O Radar Verde buscou analisar se os frigoríficos e os supermercados são capazes de garantir que a carne que compram e vendem não passou por uma fazenda que desmatou em nenhum dos elos dessa cadeia. Isso inclui os fornecedores diretos dos frigoríficos e supermercados (ou seja, de quem eles compram) e seus fornecedores indiretos (de quem os fornecedores de seus fornecedores compram).
Em meados de 2022, 90 empresas da indústria da carne no Brasil e 69 varejistas foram convidados a participar do estudo, mas apenas 5% delas aceitaram participar do trabalho, todas grandes empresas do setor. Nenhuma autorizou a divulgação de sua classificação final. Os resultados saíram em dezembro de 2022.
Dentre os frigoríficos participantes, estavam: Masterboi, Minerva, Marfrig, JBS e Agrafoods. Do setor do varejo, responderam à pesquisa o Carrefour, Assaí Atacadista e Grupo Pão de Açúcar.
Nas últimas semanas, ((o))eco procurou as empresas participantes da pesquisa para saber delas o motivo de não terem aceitado divulgar os resultados. Veja abaixo as respostas.
Frigoríficos
A Masterboi informou que é signatária de vários compromissos públicos que visam garantir a sustentabilidade de toda sua cadeia e entende a relevância da iniciativa, mas que tem questionamentos sobre a metodologia aplicada.
“Como empresa signatária de vários compromissos públicos que visam garantir a conformidade e sustentabilidade de toda a cadeia, a Masterboi vem sendo recorrentemente reconhecida pela aderência, com 100% de conformidade em relação aos critérios do Protocolo Harmonizado de Monitoramento dos Fornecedores de Gado da Amazônia.[…] Desta forma, ao analisar e discutir internamente a metodologia aplicada pela iniciativa Radar Verde, concluímos que ela poderia trazer entendimentos divergentes acerca das boas práticas praticadas pelo grupo e por esta razão, a empresa optou por não autorizar a divulgação dos dados coletados pela Iniciativa Radar Verde”, disse. Leia resposta completa enviada a ((o))eco aqui.
Diferenças na metodologia também foram a justificativa da Minerva Foods. “Conforme posicionamento enviado via Abiec [Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC)] à equipe do Radar Verde, ao analisar a metodologia aplicada nesta pesquisa concluímos que ela pode trazer entendimento divergente das boas práticas de sustentabilidade aplicadas pela Minerva Foods e a indústria”. Leia resposta completa da empresa aqui.
A negativa na divulgação dos resultados acontece mesmo tendo as empresas citadas acima se comprometido com a rastreabilidade de sua cadeia de suprimentos. A Minerva, por exemplo, há quase três anos assumiu o compromisso público de rastreamento de seus fornecedores indiretos e mantém um um programa nesse sentido.
Em resposta aos questionamentos de ((o))eco, a Marfrig reafirmou seu compromisso com a transparência, mas disse que “a ferramenta ainda não captura as variações entre as diferentes práticas dos agentes da cadeia de valor da pecuária”. A empresa disse ainda que “esse fator poderá ser aperfeiçoado a partir dos próximos ciclos, inclusive com aumento de participação dos demais frigoríficos e varejistas” e que “se coloca à disposição para apresentar seus resultados individuais do primeiro ciclo de participação do Radar Verde para seus stakeholders”. Leia resposta completa da empresa aqui.
Também desde 2020 a Marfrig mantém um programa de rastreabilidade de 100% de sua cadeia de produção. A meta é alcançar a rastreabilidade total até 2025, no caso da Amazônia, e até 2030 para os demais biomas. Segundo o site da iniciativa, chamada de Marfrig +Verde, no final de 2021, a empresa alcançou “um índice de identificação de fornecedores indiretos de mais de 63% na Amazônia e de 67% no Cerrado”.
A JBS informou que seu posicionamento é o mesmo da União Nacional da Indústria e Empresas da Carne/Uniec (veja abaixo).
Em setembro de 2020, a JBS também deu início a um programa de rastreamento total de sua cadeia, com meta de monitoramento de 100% de seus fornecedores indiretos na Amazônia para 2025.
Procurada, a Uniec informou que desde 2009 a entidade e suas associadas têm colaborado com o Ministério Público Federal “no aperfeiçoamento dos protocolos voltados à melhoria da conformidade nos processos de monitoramento e auditoria da compra de matéria prima pelas indústrias frigoríficas, curtume e exportadores de gado vivo no Estado do Pará”. Informou também que, pelos critérios estabelecidos nesses protocolos, no último ciclo de auditoria apresentado pelo MPF, em dezembro de 2022, o nível de conformidade chegou a 93,96%.
“Merece consideração o esforço do Imazon e do Instituto O Mundo Que Queremos na formação do Indicador Radar Verde, mas ao nosso ver, o uso de metodologias e critérios de avaliação distintos dos compromissos já pactuados podem gerar resultados diferentes, confundindo a todos interessados na evolução deste trabalho”, disse.
Veja nota completa da Uniec aqui.
Também para a Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes (ABIEC) o problema foi a metodologia utilizada. A entidade reforçou o compromisso das principais empresas do setor na rastreabilidade dos indiretos, mas informou que cada uma delas está em um estágio diferente nesse processo e que a divulgação dos resultados poderia causar confusão sobre “quem está fazendo direito e quem não está”.
“Especificamente sobre o Radar Verde tem o problema de dar o mesmo peso para os [fornecedores] diretos e os indiretos , quando esse trabalho com os indiretos está começando agora e o pessoal está aprendendo a fazer. Tem outras ferramentas que estão no mercado, como a Visipec, por exemplo, para ver qual o melhor jeito de monitorar os indiretos. Então elas preferem não comunicar isso agora, precisa avançar um pouco mais o controle dos indiretos, precisa deixar claro essa questão da metodologia”, disse o diretor de Sustentabilidade da Abiec, Fernando Sampaio.
Diante da resposta, ((o))eco perguntou se o problema seria a metodologia ou a incapacidade das empresas monitorarem seus indiretos. Segundo Sampaio, seriam “as duas coisas”. “Hoje o controle dos indiretos ainda é feito com o fornecedor direto informando de quem ele está comprando, com sua GTA [Guia de Trânsito Animal], e isso é um negócio que precisa avançar mais. O que seria mais útil hoje, do ponto de vista do consumidor, de quem está comprando a carne, seria saber do [fornecedor] direto quem está fazendo e quem não está fazendo, poder mostrar isso, e do [fornecedor] indireto mostrar que tem avanços, mas que é um desafio muito grande ainda para isso ser 100% controlado. Hoje não dá para dar o mesmo peso para as duas coisas”, disse.
Leia a entrevista completa com o diretor de Sustentabilidade da Abiec aqui.
A Agrafoods foi procurada por ((o))eco, mas não deu retorno até o fechamento da matéria.
Varejistas
O Carrefour informou que apoiou, desde o início, o processo de elaboração do questionário e se voluntariou a respondê-lo, “mesmo a metodologia ainda sendo preliminar e tendo tido vários ajustes”.
“Em função da baixa adesão de outras redes varejistas, a companhia optou (conforme prevê o processo de adesão) por não divulgar os dados desta primeira edição, já que a amostragem não traria a devida representatividade do setor. A rede tem sua estratégia ESG e seus compromissos de combate ao desmatamento disponíveis publicamente, inclusive divulga anualmente o Relatório de Sustentabilidade, de modo que todas as ações fiquem públicas e transparentes a todos.” Leia resposta completa da empresa aqui.
O Assaí Atacadista informou que “entende a complexidade da cadeia bovina no setor atacadista e valoriza iniciativas que buscam mensurar a atuação das empresas no tema”. Disse também que a empresa e seus frigoríficos diretos “seguem um sistema de geomonitoramento, permitindo verificar os riscos socioambientais da localização das fazendas”.
“Importante destacar ainda que, para que possam estabelecer relações comerciais com o Assaí, todos os frigoríficos são obrigados a adotar os critérios do protocolo unificado Boi na Linha […] O Assaí entende que melhorias deveriam ser realizadas [na ferramenta Radar Verde] e, por conta disso, pediu pela não publicação da avaliação”. Veja resposta completa da empresa aqui.
Já o Grupo Pão de Açúcar informou que possui uma Política Socioambiental de Compras de Carne Bovina com diretrizes para o cumprimento de critérios socioambientais específicos e reforçou seu compromisso com o combate ao desmatamento e conversão da vegetação nativa.
“A companhia ressalta que mantém diálogo aberto com as organizações responsáveis pela iniciativa Radar Verde desde a sua concepção e participou da resposta ao questionário. O GPA acredita na relevância de mecanismos que possibilitem avaliar a atuação das empresas no tema, entretanto, a companhia considera que há ajustes a serem revisados para que o levantamento da iniciativa Radar Verde leve em consideração a realidade do varejo, fato apontado durante o processo de coleta de informações às organizações responsáveis.” Leia resposta completa da empresa aqui.
Indiretos na equação
Ao longo das últimas décadas, a pecuária tem se mostrado como o principal vetor de desmatamento na Amazônia: pastos para o gado cobrem cerca de 90% da área total desmatada na Amazônia e mais de 90% dos desmatamentos novos são ilegais.
Nos limites da Amazônia Legal existem atualmente 178 plantas frigoríficas instaladas, sendo que 174 delas estão ativas. Desse total, 56% está atuando sob as regras de acordos pela sustentabilidade da cadeia da pecuária, como o Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) da Carne, assinado com o Ministério Público Federal (MPF) e que proíbe a compra de carne de fornecedores envolvidos com desmatamento ilegal, trabalho escravo ou que tenham criações dentro de áreas protegidas.
O fato de os grandes frigoríficos ouvidos na reportagem operarem sob as regras do TAC – e do programa Boi na Linha, que dá suporte ao MPF – foi justamente a justificativa para não participarem totalmente do Radar Verde.
Ritaumaria Pereira, no entanto, lembra que o TAC existe há cerca de 14 anos e os problemas ainda perduram em relação à pecuária e ao desmatamento. Isso acontece porque o TAC não conseguiu chegar a todos os frigoríficos e, principalmente, porque ele não abrange os fornecedores indiretos.
“Se você está falando de [fornecedores] diretos somente, como é o caso do TAC, mesmo aqueles frigoríficos que assinaram o TAC não podem garantir que a sua carne, que o animal que ele abateu, tenha vindo de área livre de desmatamento. Nosso diferencial é esse: a gente quer de fato mostrar para a sociedade, para o consumidor, as informações que chegam até os indiretos, para que as pessoas possam fazer escolhas dizendo ‘de fato eu sei que estou comendo carne sem desmatamento’”, explica.
Sobre as críticas à metodologia do Radar Verde, a diretora-executiva do Imazon explica que ela foi desenvolvida após muita pesquisa e considerando a realidade que ainda existe na cadeia da pecuária. Ela informou também que os métodos da ferramenta sempre foram abertos e discutidos com as empresas do setor. “Eles sabiam que seria peso igual para direto e indireto, só não sei se eles tinham noção o quanto esse peso resultaria no final, talvez seja isso que eles não autorizaram”.
De acordo com Ritaumaria, a negativa em publicar os índices alcançados e as críticas feitas mostram que as empresas ainda não estão realmente dispostas a dar transparência às suas atividades.
“É subestimar o poder do consumidor, tanto nacionalmente quanto internacionalmente. As empresas estão ainda muito focadas no futuro, temos hoje 14 anos de TAC e elas ainda estão falando o que farão com os indiretos até 2025, até 2030. Para mim, o que ficou é que elas estão esperando o futuro chegar e que talvez o consumidor não entenda a cadeia como um todo”, disse.
“O que eu vejo quando a Abiec, a Uniec, frigoríficos, varejistas se juntam para rejeitar uma ferramenta como o Radar Verde é que, de fato, não há ainda um entendimento de rastreabilidade total da cadeia, não há segurança, e por isso é meio difícil dar a transparência”, complementa.
Segundo Ritaumaria, os desenvolvedores do Radar Verde vão continuar a dialogar com as empresas do setor ao longo de 2023 para aumentar a confiabilidade. Eles esperam que, no próximo ciclo, as empresas comprovem que estão de fato comprometidas com a rastreabilidade e transparência de toda sua cadeia de suprimentos. Assim como divulgam estar.
Por: Cristiane Prizibisczki
Fonte: O Eco