Às vésperas da Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas, governo anuncia o país como uma fonte segura de energia renovável para o planeta, enquanto amplia subsídio a termelétrica que mais polui
O governo brasileiro promete chegar à Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP27) este ano lançando o país como uma fonte de energia renovável para o planeta e com a perspectiva de ser “a segurança da energia limpa do mundo“, conforme anunciou o ministro do Meio Ambiente, Joaquim Leite.
No entanto, às vésperas da COP, que será realizada entre 6 e 18 de novembro no Egito, o Brasil irá elevar suas emissões do setor energético com a extensão até 2040 de subsídios ao carvão. Isso porque o governo sancionou em janeiro uma lei (a 14.299) prevendo essa ampliação para o carvão produzido em Santa Catarina, maior produtor do energético no Brasil e que emprega 70% da mão de obra do setor.
A decisão vai na contramão do compromisso com a diminuição do uso de combustíveis fósseis no acordo final da COP-26, assinado por 196 países, incluindo o Brasil. Também vai no sentido oposto ao de grandes empresas de energia que atuam no país, que estão deixando a produção de carvão para reduzir suas emissões.
Em setembro, a Engie, a maior geradora privada do país, anunciou a venda da termelétrica Pampa Sul, no município de Candiota (RS), para os fundos de investimento em participações Grafito e Perfin Space X, geridos pelas empresas Starboard e Perfin, respectivamente. O ativo tem capacidade instalada de 345 MW. Foi o último ativo a carvão remanescente no portfólio da empresa no Brasil, já que venda está alinhada à meta do grupo de liderar a transição energética para uma economia neutra em carbono.
Agora, a empresa tem uma matriz 100% renovável no Brasil. “Após o fechamento da operação de venda da Pampa Sul, avançaremos em nossa estratégia, nos consolidando como a maior empresa de energia limpa do setor elétrico brasileiro, totalizando 8.096 MW de capacidade instalada própria proveniente de fontes renováveis”, declarou Eduardo Sattamini, diretor-presidente da companhia. Desde 2013, a Engie descomissionou duas usinas, Alegrete e Charqueadas, ambas no Rio Grande do Sul, e no ano passado registrou a venda do Complexo Termelétrico Jorge Lacerda, em Santa Catarina.
A Eneva, a maior operadora privada de gás natural do Brasil – responsável por 44% da produção disponível de gás em terra e a maior empresa privada em potência termelétrica, com 3,8 GW, – também está revendo seus investimentos no energético. Desde 2020, a empresa se comprometeu a não fazer novos investimentos em carvão, além das térmicas de Pecém (CE) e Itaqui (MA). Assinou em 2022 o Powering Past Coal Alliance, uma coalizão de governos, empresas e organizações que trabalham para avançar na transição da geração de energia a carvão para energia limpa, de forma justa e inclusiva. A empresa também se comprometeu a realizar a saída gradual das plantas de carvão de Itaqui (MA) e Pecém II (CE) até 2040. Isso integra o plano da empresa de ser carbono zero até 2050.
A lei 14.299 determina que a União prorrogue a autorização do Complexo Jorge Lacerda, por 15 anos, a partir de 1º de janeiro de 2025. Neste período, o Ministério de Minas e Energia (MME) deverá assinar um contrato de compra de energia de reserva da usina a carvão – a mais poluente das fontes de energia. A Associação dos Grandes Consumidores de Energia (Abrace) estima um custo anual de R$ 840 milhões para todos os consumidores de energia do país com a medida. Haverá impacto sobre poluição também.
A decisão deverá elevar a emissão do setor elétrico, uma tendência que já vinha ganhando corpo nos últimos 20 anos, com o avanço das termelétricas a gás natural. A geração das usinas termelétricas aumentou de 30,6 TWh em 2000 para 84,8 TWh em 2020, quase o triplo, enquanto o total de emissões de gases de efeito estufa (GEE) no setor elétrico brasileiro aumentou 90% entre 2000 e 2020, segundo análise do Instituto de Energia e Meio Ambiente.
No ranking das usinas mais poluentes do país, segundo a entidade, duas usinas a carvão figuram entre as quatro maiores emissoras de poluentes na atmosfera. O estudo ainda aponta que as 72 usinas inventariadas emitiram 32,7 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente em 2020: “Apenas 12 usinas emitiram 55% dos gases de efeito estufa (GEE), oito movidas a carvão mineral como combustível principal e outras quatro a gás natural.”
A legislação do carvão se soma à outra com prejuízo ambiental. Para aprovar a capitalização da Eletrobras, incluiu-se emenda que prevê a inserção de 8 GW em termelétricas a gás no SIN entre os anos de 2026 e 2030. Essas usinas vão operar em tempo integral com capacidade mínima de 70% por pelo menos qu15inze anos. “Consequentemente, as emissões anuais de gases de efeito estufa aumentarão em pelo menos 17,5 MtCO₂e, representando acréscimo percentual de 32,7% em relação às emissões de todo o setor elétrico registradas em 2019”, segundo a análise do Instituto de Energia e Meio Ambiente.
A lei 14.299 cria uma política de ajuda ao setor de carvão de Santa Catarina e uma política de transição justa voltada à energia limpa. Em julho, o governo federal publicou decreto com os detalhes da governança do conselho responsável por elaborar o plano de transição e coordenar e monitorar o programa. Serão 11 membros e será coordenado pelo Ministério da Casa Civil. As demais indicações virão dos ministérios do Desenvolvimento Regional (1), Meio Ambiente (1), Minas e Energia (2); do governo catarinense (1); da Associação Brasileira do Carvão Mineral (1); da Associação dos Municípios da Região Carbonífera de Santa Catarina (1); da Federação Interestadual dos Trabalhadores na Indústria da Extração do Carvão no Sul do País (1); e do Sindicato da Indústria de Extração de Carvão de Santa Catarina (1). Esse Conselho irá criar o plano de transição para uma economia de baixo carbono em Santa Catarina.
No Brasil, as térmicas a carvão somam potência instalada de 3 gigawatts, o que representa menos de 2% da matriz elétrica brasileira ante cerca de 80% de participação de fontes renováveis. Um dos minerais mais poluentes do mundo e responsável pela estimativa de 7% das emissões globais dos gases que causam o efeito estufa, o carvão está no centro do debate mundial. Se no início do ano, no mundo, havia desinvestimento na área, com países europeus como a Alemanha com planos de desligar suas usinas a carvão, a guerra entre Ucrânia e Rússia (leia mais abaixo) marcou uma inflexão na área. A expectativa é que o consumo de carvão na União Europeia aumente 7% em 2022. A Alemanha deve elevar sua importação do mineral em 11%, a Espanha reconsiderou sua decisão de fechamento de usinas.
A ameaça de racionamento na Europa, em razão da interrupção de envio de gás russo aos países da União Europeia, e crise hídrica na China, o que diminuiu a geração de hidrelétricas, deverá fazer demanda mundial de carvão atingir um novo recorde em 2022, chegando a 8 bilhões de toneladas, igualando o número de 2013, segundo os dados divulgados em um relatório da Agência Internacional de Energia (AIE). “Esse aumento acentuado contribuiu significativamente para o maior aumento anual das emissões globais de CO2 relacionadas à energia em termos absolutos, colocando-as em seu nível mais alto da história”, escreveu a AIE em seu relatório.
“Vários países da UE estão estendendo a vida útil das usinas de carvão programadas para fechamento, reabrindo usinas fechadas ou aumentando o limite de suas horas de operação para reduzir o consumo de gás. No entanto, a Europa representa apenas cerca de 5% do consumo global de carvão”, informou a agência. China e Índia respondem por cerca de metade do consumo mundial.
A invasão dos tanques russos à Ucrânia na madrugada de 24 de fevereiro marca uma inflexão no cenário energético mundial com repercussões de curto, médio e longo prazo em todo o mundo. Até o conflito, cerca de 40% do gás europeu era fornecido pela Rússia, com destaque à Alemanha. Com a interrupção dos volumes de envio nos últimos meses, a população europeia convive com contas altas e planos de racionamento com a possibilidade de ter de reduzir o consumo de energia em 15% até março de 2023. A crise internacional cria uma oportunidade para o Brasil, cuja matriz elétrica é na maioria renovável.
Análise do Instituto Bruegel, divulgada em setembro, aponta que os subsídios de governos para suavizar a alta das contas já chega a 500 bilhões de euros. Empresas grandes, como a francesa EDF e a alemã Uniper, receberam bilhões de injeção de capital de seus governos para se manterem operacionais. A Uniper, maior fornecedora de gás da Alemanha, foi estatizada na penúltima semana de setembro. Analistas estimam que a dependência histórica dos países europeus, como a Alemanha, do gás russo não será resolvida em um inverno.
Na análise da consultoria Timera Energy, a escassez de gás pode perdurar por três anos. Sem a Rússia voltar aos padrões de envio de gás de janeiro, as opções sobre a mesa seriam: redução da demanda industrial e residencial. Isso se combina à disparada dos preços, que tende a fazer Tesouros terem de cobrir as contas de milhões de consumidores.
O vazamento de um dos principais gasodutos que escoam gás russo para Europa na semana passada também traz preocupações sobre os impactos ambientais. Segundo estimativas, o incidente, classificado como sabotagem pelos países reunidos sob a OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), tem o mesmo impacto da emissão de dois milhões de veículos e pode representar 1% das emissões anuais da Alemanha.
Nesse cenário, os países europeus têm rediscutido suas matrizes energéticas. A Alemanha não irá mais desligar usinas nucleares e tem elevado o consumo de carvão (importação deve subir 11% em relação ao ano passado). Não é um caso isolado. A expectativa é que o consumo de carvão na União Europeia aumente 7% em 2022, segundo dados da Agência Internacional de Energia.
Já a China tem sofrido esse ano com a crise hídrica, que tem reduzido a geração das hidrelétricas. Resultado: acionamento mais intenso de usinas a carvão. Índia e China respondem por metade do consumo do mineral no mundo. Isso deverá fazer com que muitos países descumpram as metas acertadas no Acordo de Paris, em que os países se comprometeram a reduzir suas emissões para limitar o aumento da temperatura em 1,5 grau celsius.
As implicações para o Brasil são duas: 1) em caso de crise hídrica, a importação de gás para atender à demanda de termelétricas a gás natural será cara e poderá criar impactos sobre a tarifa; 2) o país pode liderar a transição mundial para uma economia de baixo carbono em um cenário em que muitos países irão elevar a emissão de poluentes.
O Brasil tem uma oportunidade relevante nesse cenário. Com abundância de sol, vento, biomassa de cana de açúcar e recursos hídricos, o país pode liderar a transição para a economia de baixo carbono. “O Brasil tem grande potencial e isso se verifica no interesse crescente em certificados de energia renovável”, diz Fernando Lopes, diretor do Instituto Totum, emissor no Brasil de I-Recs, certificados de energia renovável, pelo qual as empresas podem certificar que a energia usada em suas linhas de produção é renovável.
A negociação desses papéis deve chegar perto de 20 milhões neste ano, o dobro do ano passado. O Brasil é o segundo maior mercado do mundo, atrás apenas da China. Com a matriz elétrica com mais de 80% baseada em fontes renováveis, multinacionais estrangeiras poderão dar ainda mais ênfase à energia limpa brasileira.
Pode ainda ter destaque em hidrogênio verde, um novo segmento que pode ser uma alternativa de descarbonização. Um dos trunfos do Brasil no cenário energético global é a complementariedade entre suas fontes renováveis, um contraste em relação ao restante do planeta, porque boa parte dos países desenvolvidos ainda usa carvão de forma considerável. Quando ocorre o período seco, de maio a novembro, as hidrelétricas perdem água, mas a biomassa de cana-de-açúcar e as eólicas geram mais eletricidade. A partir do crescimento das fontes renováveis de energia foi possível obter o chamado hidrogênio verde, produzido com a energia de hidrelétricas, solar, eólica ou biomassa a partir de eletrólise (carga de energia para separação do hidrogênio).
Por: Roberto Rockmann
Fonte: Repórter Brasil