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Levantamento inédito feito pelo CCCA, em parceria com ((o))eco, mostra ocupação de UCs em Rondônia como método para forçar redução ou reclassificação de áreas
As mortes do jornalista inglês Dom Phillips e do indigenista Bruno Pereira, confirmadas pela Polícia Federal na última semana, escancararam a situação de abandono em que vive o sudoeste amazônico. Encorajados pela ausência do Estado, garimpeiros, grileiros, caçadores, traficantes e pescadores ilegais ocuparam a área usando o medo como forma de domínio.
Esta ausência, no entanto, não acontece somente nessa porção da floresta, mas em muitas partes da Amazônia. Para especialistas, não se trata de omissão ou descaso, mas sim um método no qual a ocupação irregular da área é facilitada para atender a interesses próprios ou de terceiros.
Rondônia: tinha uma UC no meio do caminho
Rondônia é um dos estados que mais desmata na Amazônia. Segundo dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE), ele ocupa a terceira posição no ranking de unidades da federação com maior acumulado de destruição: somente entre 2008 e 2021 foram perdidos 14 milhões de hectares de floresta, o que representa 13% do total desmatado no bioma no período e equivale à metade do território da Bélgica.
Muito deste desmatamento tem ocorrido dentro das áreas protegidas. Segundo levantamento feito pela WWF, somente nos cinco primeiros meses de 2022 (janeiro a maio), 4.500 hectares foram desmatados dentro de unidades de conservação (UCs) e Terras Indígenas no estado.
A ocupação – ou antropização – de áreas protegidas é frequentemente utilizada como argumento para alterar os limites de uma unidade de conservação, como vimos na primeira reportagem da série.
Essa foi a justificativa do Governo do Estado de Rondônia para, no ano passado, reduzir em 220 mil hectares o Parque Estadual de Guajará-Mirim e a Reserva Extrativista Jaci-Paraná.
Segundo Heron Martins, mestre em Uso Sustentável de Recursos Naturais em Regiões Tropicais e Analista de Dados do Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis), o processo de desafetação, reclassificação ou extinção de uma área protegida, principalmente na Amazônia, não acontece porque a área já estava muito ocupada, como justificou o governo de Rondônia. O movimento é o contrário, diz ele.
“Existe uma metodologia muito bem implementada para se reduzir uma UC”, explica. O primeiro passo, segundo o analista, é a ocupação e descaracterização da área, muitas vezes incentivada e financiada por grandes proprietários de terra, que pagam para que pessoas menos favorecidas se estabeleçam dentro dos limites da unidade. Só depois é que a questão social e a pressão política pela desafetação são criadas.
Por fim, as pessoas que de fato estavam interessadas na área reivindicam o direito a ela, expulsando aqueles que elas mesmas incentivaram a ocupar ou comprando terras de forma muito barata.
“É uma descaracterização deliberada, um plano, um projeto. É algo bem articulado que conta, muitas vezes, com a falta de ação do governo. E por que o governo não age? Porque existem pressões políticas impedindo essa ação, então a descaracterização vai acontecendo, vai avançando e depois a pressão que era para impedir essas ações do governo, acabam se convertendo para reduzir a área protegida”, explica.
Heron Martins foi um dos autores de um estudo de 2014 que avaliou a pressão do desmatamento em áreas protegidas reduzidas na Amazônia. Segundo este trabalho, o desmatamento aumentou, em média, 50% nas áreas desafetadas das UCs, enquanto diminuiu 53% no seu entorno, o que demonstra a situação de pressão em que as áreas se encontravam.
Ivaneide Bandeira Cardozo, conhecida como Neidinha Suruí, sabe bem do que Martins está falando. Vivendo em Rondônia desde a adolescência, a indigenista, que há 50 anos luta pela defesa da floresta e dos povos indígenas do bioma, convive diariamente com essa dinâmica de ocupação.
“O que tenho visto no campo, em unidades de conservação e Terras Indígenas, é desesperador. É a ilegalidade tomando conta de tudo, os grandes se apropriando dos espaços. Na Resex Jaci-Paraná, por exemplo, existem mais de 200 mil cabeças de gado dentro, então não é o pequeno produtor, os extrativistas, que se apropriaram da unidade, são os grandes”, explica.
Aumento na ocupação
Pelo Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC), Reservas Extrativistas, como a Jaci-Paraná, citada por Neidinha Suruí, só permitem a ocupação por comunidades tradicionais.
Um levantamento realizado pelo CCCA, no entanto, revelou que existe uma corrida para ocupação da Resex nos últimos anos.
Até 2018, existiam 93 propriedades particulares registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR) dentro desta unidade. Entre 2018 e 2021, mais 189 foram inscritas. A área total declarada como propriedade privada nesta terra pública é de 23.257 hectares, o que representa 12% da Resex.
O registro no CAR é o primeiro passo para se tentar a regularização posterior da área e um meio de conseguir crédito rural.
Já os Parques Estaduais são unidades de proteção integral e não permitem nenhuma ocupação em seu interior. O levantamento do CCCA mostrou que a situação em Guajará-Mirim é oposta ao que diz a norma.
Até 2018, existiam 72 propriedades particulares registradas no CAR dentro deste parque. Somente nos últimos quatro anos (2018-2021), mais 114 propriedades foram inscritas no CAR, totalizando 64.449 hectares registrados como propriedades particulares dentro da unidade, ou 29% de seu total.
“Tivemos um aumento enorme do desmatamento em toda região nos últimos anos”, corrobora Neidinha.
Além dessas duas, o CCCA levantou os dados de CAR para outras 11 unidades de conservação alvos de recentes tentativas de exclusão ou redução feitas pelo Executivo e Legislativo rondoniense. Confira abaixo:
Resoluções para o problema
Segundo especialistas, existem algumas formas de se evitar que as unidades de conservação sejam dizimadas no país. Uma delas passa pela inclusão de filtros nos sistemas de Cadastro Ambiental Rural, de forma a criar polígonos em que o registro estaria impedido.
Segundo Heron Martins, já existe tecnologia para isto, o que falta é vontade.
“Isso é um pedido de muitas pessoas que atuam na área ambiental, mas existe bastante divergência quando você conversa com o governo. Tem aqueles que defendem que deve continuar aberto porque, dessa forma, a gente consegue, segundo eles, visualizar quem tem interesse nas áreas protegidas e, assim, agir. Mas isso, na prática, acaba não sendo real”, diz o pesquisador.
Martins explica que outra justificativa para não impedir o cadastro de propriedades privadas dentro de áreas públicas é que existem pessoas que já estavam dentro dos limites da unidade quando ela foi criada e, portanto, teriam o direito a realizar esse processo. Também para esta situação existem alternativas tecnológicas e políticas, diz.
“Eu defendo que não deveria ser permitido [o cadastro], que o sistema deveria travar quando se tentasse colocar […] Porque a gente não deveria nem cogitar o fato de alguém colocar propriedade dentro de unidades de conservação. Se não forem áreas de uso sustentável, por que permitir a especulação?”, questiona.
Grilagem, agropecuária, pressão política e atuação contundente de governos locais têm acabado com nossas unidades de conservação. Ou, pelo menos, têm tentado, já que uma barreira importante precisa ser transposta: a da justiça.
Judicialização: a última barreira
No último dia 3, o Ministério Público Estadual fez um sobrevôo sobre o Parque Estadual Guajará-Mirim para identificar e registrar os locais invadidos. A ação foi realizada em resposta a uma sentença proferida pela Justiça de Rondônia em abril passado, quando o poder judiciário do estado julgou procedente uma Ação Civil Pública que pedia a retirada dos ocupantes do parque.
A ação faz parte de outras movidas pelo Ministério Público Estadual (MPE) nos últimos anos, na tentativa de barrar as alterações ou ocupações nas áreas protegidas do estado.
Segundo o promotor de justiça do MPE de Rondônia, Pablo Hernandez Viscardi, nos últimos anos, o Ministério Público tem agido com bastante ênfase nas demandas de extinção de UCs e exploração de garimpo, por meio principalmente de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADI).
“Há um grande número de ADI ingressadas pelo MPE ao longo dos últimos 10 anos, então é um movimento que já vem de algum tempo. O que nós temos detectado aqui, de uma forma empírica, é que há uma pressão política um pouco maior nos últimos 3, 4 anos”, diz ele, que é coordenador do Grupo de Atuação Especial em Meio Ambiente (GAEMA) do MPE.
De acordo com Viscardi, o Legislativo de Rondônia tem, de fato, sido um problema nesta questão. A falta de diálogo e abertura com outros atores da sociedade civil organizada e com o Ministério Público têm imperado nos processos de alteração de UCs.
“Dificilmente há uma abertura para participar dessas alterações legislativas […] A gente tem visto que nas audiências públicas, por exemplo, quando realizadas pela Assembleia, há somente um público particular e específico participando, tendencioso para a parte da extinção, da desafetação, o que retira a legitimidade e dificulta sobremaneira a participação técnica, com acuidade legal”, diz.
Já o Executivo do Estado, segundo o promotor, tem se mostrado aberto ao diálogo. Tanto é que entrou como autor, junto com o MP, na Ação Civil Pública que pedia a retirada dos invasores na Guajará-Mirim.
“Não posso fazer essa afirmação de que o Executivo é refratário a toda e qualquer situação referente às unidades de conservação, diferente do que a gente vê na Assembleia”, diz.
Este não é exatamente o entendimento de quem vive lá. Segundo Neidinha Suruí, o estado como um todo é dominado pelo pensamento bolsonarista em relação às áreas protegidas. Jair Bolsonaro foi eleito em Rondônia com 72% dos votos e seu atual governador é alinhado à política do governo Federal.
“Rondônia talvez seja o estado onde o bolsonarismo esteja mais forte e implemente as ações de ataque às UCs muito mais escancaradamente do que em outros lugares […] Rondônia é o micro do macro”, diz.
No meio do caminho tem o voto
Todos os entrevistados para a construção desta série foram questionados sobre qual seria a solução para que áreas protegidas não só de Rondônia, mas de todo bioma amazônico, deixem de ser dizimadas. Votar melhor foi a resposta unânime.
Enquanto não formos capazes de escolher melhores governantes, dizem eles, as riquezas desses territórios continuarão a ser sistematicamente usurpadas, pois não há obstáculos para as forças que hoje violam as áreas protegidas pelo país. O recado dado com o assassinato de Dom Phillips e Bruno Pereira foi bem claro.
*Essa reportagem contou com a parceria do Centro para Análise de Crimes Climáticos (CCCA – Center for Climate Crime Analysis)
Por: Cristiane Prizibisczki
Fonte: O Eco