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Por: Rubens Valente, Alice Maciel, Caio de Freitas Paes, Laura Scofield, Matheus Santino, Bianca Muniz, Thiago Domenici

Governo criou planos de contingência após ser obrigado pelo STF; manifestação da ativista Greta Thunberg preocupou GSI

Ao final de 2022, mais de 900 indígenas e ao menos 301 quilombolas haviam morrido de covid-19. O alto índice de contaminações e mortes nos territórios tradicionais e urbanos e a falta de estrutura oferecida pelo Estado (como a falta de água potável nas aldeias) levou organizações representativas dessas comunidades a denunciarem a “omissão” do governo federal na administração da crise sanitária — as denúncias foram levadas ao Supremo Tribunal Federal (STF), que obrigou o governo a tomar medidas. 

Organizações indígenas e quilombolas denunciaram “omissão” do governo federal durante crise sanitária. Foto: Alexandre Manfrim e Igor Soares/Ministério da Defesa

Agora, 233 atas sigilosas obtidas via Lei de Acesso à Informação (LAI) pela Agência Pública finalmente revelam quais eram as prioridades do governo enquanto a Covid-19 se disseminava entre os povos tradicionais. 

Os registros são parte da memória escrita das reuniões realizadas entre 2020 e 2021, até agora secretas, realizadas pelo CCOP e obtidas com exclusividade pela Agência Pública via Lei de Acesso à Informação (LAI). As reuniões envolveram representantes de 26 órgãos da Esplanada, incluindo os principais ministérios, agências reguladoras, bancos públicos, a Polícia Federal e a Abin (Agência Brasileira de Inteligência). O CCOP foi criado a partir de um decreto de Bolsonaro logo no início da pandemia, em 24 de março de 2020. 

Antes das cobranças do Supremo no âmbito das Arguições de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPFs) 709, referente aos povos indígenas, e 742, referente a comunidades quilombolas, a criação de um plano para controlar a disseminação da doença entre essas populações era postergada nas reuniões do Centro de Coordenação das Operações do Comitê de Crise da Covid-19 (CCOP), chefiadas pela Casa Civil, então comandada pelo general da reserva do Exército Walter Braga Netto.

As poucas citações aos indígenas e quilombolas eram trazidas pelos estados — em reuniões desses com o governo federal — ou surgiam para indicar a realização de alguma medida de assistência pontual, como a entrega de cestas básicas. 

Em um dos episódios, em 3 de julho daquele ano, a ex-ministra e atual senadora Damares Alves (Republicanos), do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos (MMFDH), disse estar “preocupada” com a situação dos indígenas Xavante, no Mato Grosso. Ela culpou o aumento da incidência da Covid-19 entre o povo a uma suposta “cultura de festas e comemorações” do mesmo. Na época ainda não existia lei que protegesse os territórios indígenas da entrada de estrangeiros, que poderiam levar a doença. Após o apontamento, o MMFDH fez algumas reuniões para abordar o tema, mas as discussões não estão registradas nas atas.

A Lei 14.021/2020, que busca proteger os territórios indígenas da contaminação por Covid-19, foi aprovada em 7 de julho de 2020, meses após o início da pandemia.

As atas também registram pedidos para que ações do governo fossem mais divulgadas. Em uma participação em 7 de maio de 2020, o representante do MMFDH disse que era “importante melhorar a divulgação das ações realizadas, a exemplo daqueles (sic) direcionadas ao atendimento das populações indígenas”.

Meses depois, em 8 de julho daquele ano, o pedido se repetiu: “Reforçar a comunicação estratégica em todas as ações realizadas para Povos e Comunidades Tradicionais”, lembrou o representante do MMFDH. Naquele dia, o Comitê Nacional de Vida e Memória Indígena indicava que 253 indígenas já haviam morrido de Covid-19. 

O Gabinete de Segurança Institucional (GSI), então chefiado pelo general da reserva do Exército Augusto Heleno, também se mostrou preocupado com a imagem nacional e internacional do governo quanto às ações voltadas aos povos tradicionais durante a pandemia.

Em 31 de agosto daquele ano, o representante do GSI “informou que essa semana haverá uma manifestação internacional contra o Governo federal com ênfase nas questões Indígenas e Ambiental, com a participação da ativista sueca Greta Thunberg através do movimento Fridays for Future. O Greenpeace também se juntou ao movimento” e pediu que o governo apresentasse “os diversos projetos e realizações feitas nessa questão”. A manifestação focada no Brasil já havia acontecido naquela mesma semana, na sexta-feira (28), anterior à fala do GSI. 

Em 16 de setembro, a Casa Civil reforçou o pedido de que as informações trazidas pelo GSI quanto aos povos tradicionais fossem replicadas por outros órgãos.

O plano de contingência

De acordo com as atas, a preocupação com a comunicação era constante, mas a elaboração concreta de planos de contingência da Covid-19 entre os povos tradicionais não parecia uma prioridade. Logo no início da pandemia, em 2 de abril de 2020, a Casa Civil afirmou que o Comitê de Crise dos Povos Indígenas realizaria uma reunião para “elaborar plano estratégico para a atuação” e que a expectativa era que até domingo (5) estivessem “delineadas as atividades e ações mais importantes”. Em 6 de abril, a Secretaria de Articulação e Monitoramento, vinculada à Casa Civil (SAM-CC), fez mais um lembrete de que o plano de manejo seria criado para atender “176 mil indígenas, ribeirinhos e quilombolas”.

Na mesma reunião, o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos disse que havia sido cobrado pelo Ministério Público Federal a respeito do enfrentamento à Covid-19 entre os povos tradicionais e que queriam “consolidar isso para não terem problemas futuros”.

A próxima citação aos indígenas se deu em 13 de abril, mas nenhum plano foi apresentado. A informação compartilhada pelo MMFDH era que a primeira morte de um indígena teria sido registrada — o ministério também agradeceu a Casa Civil pela “antecipação da medida para os povos indígenas”, referindo-se ao movimento de criar o plano estratégico, que ainda não estava feito. 

De acordo com a Associação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), ao menos quatro indígenas já haviam morrido até aquela data. 

Meses depois, em 10 de junho de 2020, o MMFDH informou que ainda estavam “aguardando” as sugestões dos Ministérios para a criação do Plano de Contingência para Povos e Comunidades Tradicionais, “com foco maior nos Povos Indígenas” — enquanto os povos quilombolas foram citados apenas 11 vezes nas atas, os indígenas aparecem 97 vezes. 

No dia 8 de julho de 2020 o Supremo Tribunal Federal interveio. Em resposta à ADPF 709, apresentada pela APIB e seis partidos políticos, o ministro Luís Roberto Barroso, relator da ação, determinou que o governo agisse para conter o contágio e a mortalidade por Covid-19 entre a população indígena. O plano de contingência deveria ser apresentado em 30 dias. 

Instado pelo STF, o GSI de Augusto Heleno disse, no encontro de 15 de julho do CCOP, que a primeira reunião para tratar do tema ocorreria dois dias depois. O encontro teria “a provável presença do Ministro do STF Luís Roberto Barroso onde o Governo federal mostrará tudo o que já tem feito no enfrentamento à pandemia para os Povos Indígenas, em alinhamento com o Centro de Coordenação de Operações – CCOp”.

A criação do plano de contingência foi agilizada somente depois que o STF entrou no caso, determinando um prazo. No dia 20 daquele mês, o GSI lembrou que o MMFDH ainda estava criando o plano, que seria apresentado “dentro do prazo estipulado pelo STF”. O ministério chefiado por Damares Alves disse então que o “monitoramento [da Covid-19 entre os povos tradicionais] é feito com muito zelo”, sem explicar o que isso significava na prática. 

O plano apresentado pelo governo Bolsonaro foi recusado quatro vezes. O ministro disse que os projetos apresentados eram “genéricos” e não era possível acompanhar sua implementação. Questionado acerca do tema na reunião de 23 de outubro de 2020, o Ministério da Justiça e Segurança Pública (MJSP) jogou a culpa no MMFDH, pois viria do ministério de Damares “a parte não homologada do plano”, como registrou a ata consultada pela Pública.

A mesma dinâmica — de apenas elaborar planos concretos após ordens judiciais — é vista nas atas tanto em relação à tragédia de Manaus quanto no que diz respeito às comunidades quilombolas, ainda mais negligenciadas que as indígenas.

Em 24 de março de 2021, quando a via sacra de criação do plano de contingenciamento para os indígenas já havia sido superada, o CCOP começou a olhar para quilombolas — novamente, apenas depois de ser obrigado pelo STF. Naquele dia, a Advocacia-Geral da União (AGU) falou sobre a ADPF 742, que buscava a implementação de medidas emergenciais de mitigação dos impactos da Covid-19 em territórios quilombolas.

A AGU havia tomado conhecimento de que em 19 de março o STF obrigou o governo a elaborar “no prazo de 30 dias um plano nacional de enfrentamento da pandemia da Covid-19 voltado à população quilombolas e; Protocolos sanitários para assegurar a eficácia da vacinação na fase prioritária”.

O primeiro projeto foi entregue em 9 de abril, mas a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) protocolou no STF uma denúncia na qual argumentava que o plano apresentado pelo governo era insuficiente. Dessa forma, no início de maio, o relator, ministro Edson Fachin, pediu mais informações

No dia 26 daquele mês, os quilombolas foram citados pela última vez nas atas, dessa vez pelo MMFDH. A representante do ministério disse que naquele dia aconteceria a 6ª reunião do grupo de trabalho criado para instituir o plano e pediu a participação de outros ministérios. 

Em 22 de julho de 2021, o site do governo publicou estimativas de execução do plano. O documento é uma apresentação em power point de 14 páginas. 

Fonte: A Pública

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