Por trás das chamas está a destruição dos modos de vida amazônicos e mudança importante na dinâmica do agronegócio
Quase todos os anos, a cidade de Lábrea, no sul do Amazonas, bate recordes de queimadas. O município está na rota da expansão do agronegócio, um processo que se consolidou sob o governo de Jair Bolsonaro (PL).
Para quem vive na região, a devastação não é apenas da paisagem. O fogo é símbolo da morte cultural das populações cuja identidade histórica está ligada à biodiversidade.
“Para começo de conversa, essas queimadas representam destruição”, diz o cacique José Bajaga Apurinã, coordenador da Federação das Organizações e Comunidades Indígenas do Médio Purus.
“Além de matar nossas árvores, ressecar nossos rios, matar nossos animais, a fumaça adentra nas aldeias e sai fazendo um desmatamento total. A gente fica com dificuldade de respirar, com dor de cabeça, garganta inflamada”, relata.
A “desamazonização” da Amazônia
A liderança indígena diz que os incêndios em Lábrea começam nas propriedades do entorno. O vento carrega as brasas para dentro da Terra Indígena onde o cacique nasceu, chamada Caititu.
O território tem o nome de uma espécie de porco do mato que está na base da alimentação das comunidades. Hoje o cacique diz que o caititu está desaparecendo, assim como as árvores frutíferas também. Os igarapés estão cada vez mais secos, e a pesca já não rende tanto como antes.
É o processo de “desamazonização” da Amazônia, conforme define o Ricardo Gilson da Costa Silva, professor de geografia e integrante do Laboratório de Pesquisa em Gestão do Território da Universidade Federal de Rondônia (Unir).
O estudioso do agronegócio na Amazônia afirma que a ideia de um ser humano indissociável da natureza faz parte da vida social dos povos da região, que se dá em meio à floresta em pé, rios caudalosos e fartos recursos naturais.
“O agronegócio produz uma cisão nessa ideia, porque ele não cultua a natureza. Não existe floresta pra ele. Existe terra arrasada. Então não há sociobiodiversidade, que é muito forte na Amazônia. Nessa lógica. existe uma ‘mononatureza’. Uma natureza do grão”, atesta.
Expansão da soja e deslocamento da pecuária
Os dados do Inpe confirmam que o sul do Amazonas nunca queimou tanto. Este já é o pior setembro da história e caminha pra se tornar o mês com mais focos de calor desde o início da série histórica em 1998.
Segundo o pesquisador da Unir, o motivo é a expansão da soja em Rondônia e no Mato Grosso. Os municípios rondonenses com plantio do grão triplicaram nos últimos 20 anos. A soja se expande e expulsa a pecuária, que por sua vez se desloca cada vez mais ao norte. E no caminho dos grileiros está a Terra Indígena caititu, do cacique Zé Bajaga.
“A nossa terra faz tempo que foi demarcada e homologada. Mas tem focos de título definitivo dentro dessa terra, já desse ano, que eu não sei como conseguiram. E também tem um pedaço de terra que um grande empresário aí disse que é dele, dentro da terra indígena”, denuncia a liderança.
“O barretão do Norte”
Na avaliação do professor da Unir, as regiões onde a pecuária chegou há mais tempo já estão “desamazonizadas”. Um exemplo é o município de Apuí, no sul do Amazonas, que recebeu os primeiros colonos na década de 80.
Desde então a identidade local foi sendo apagada aos poucos. Cercada por pasto, a cidade tem um rodeio como atração principal. “É o barretão do Norte’”, anuncia o locutor no vídeo promocional do evento, em referência à Festa do Peão de Barretos, uma das mais tradicionais do Brasil.
Segundo o pesquisador, o evento é a face aparente de transformações sociais mais profundas provocadas pela pecuária. Um símbolo da vitória do agronegócio sobre os povos da floresta.
“Esse modelo político-econômico-territorial do agronegócio disputa a sociedade. Portanto vai acontecer isso em Lábrea (AM). Vai ter a festa da soja, da pecuária, colocando as comunidades ribeirinhas como um atraso. Porque eles defendem isso. Eles acham que os povos amazônicos e floresta em pé são um atraso”, prevê Silva.
Por: Murilo Pajolla
Fonte: Brasil de Fato